A busca pela autonomia da pessoa autista nos processos de regulação

Autista. Parece que, por definição, esta palavra significa “aquele que depende de alguém”. Para socializar, se organizar, se locomover, se regular – viver o mundo. A culpa talvez seja da própria palavra, que tem como etimologia no grego AUTO-(“de si mesmo”) e -ISMOS (indicativo de estado de ser ou ação).

Por conta da alexitimia, condição presente em alguns autistas que dificulta a compreensão de emoções, podemos depender muito dos outros para compreender nossos sentimentos – e isso pode abrir portas para a terceirização de vários processos importantes para nós. 

Hoje, falaremos sobre um desses processos: a autorregulação.

A busca da autonomia da pessoa autista não depende apenas do indivíduo autista, mas também de uma mudança social para que o mundo compreenda nosso estilo de vida – e de vivência. Como essas mudanças são complexas, vamos fazer o que nos é possível: buscar ferramentas para a nossa autonomia em nossos processos de regulação.

É importante começar do começo

Antes de ser capaz de se autorregular, é importante que haja uma compreensão básica das emoções. A pessoa autista não deve apenas ser capaz de identificar emoções, mas também identificar como a emoção se parece e como a pessoa se sente ao processar ela.

Colocar a identificação da emoção em primeiro lugar ajuda a construir a autoconsciência emocional, tornando mais fácil entender como gerenciar a superestimação ou a sub estimulação sensorial e emocional no ambiente.

O que é autorregulação emocional?

A autorregulação é a habilidade de modular as emoções, cognição e comportamentos para atingir um objetivo específico. Essa capacidade é fundamental para lidar com as imprevisibilidades das dinâmicas sociais, as quais frequentemente geram uma sobrecarga significativa para pessoas autistas. Isso ocorre porque essas situações demandam um processamento emocional imediato em ambientes frequentemente caóticos.

As dinâmicas sociais representam um desafio particular para pessoas autistas, uma vez que demandam habilidades específicas de processamento emocional e comunicação funcional, essenciais para estabelecer a reciprocidade emocional e social típica do ser humano. No entanto, indivíduos no espectro autista enfrentam déficits persistentes na comunicação e/ou na interação social, que geram sobrecarga e demandam do indivíduo a autorregulação mais frequente.

No desenvolvimento do processo de autorregulação, podem existir três processos regulatórios que são convergentes e integrados:

· Regulação Cognitiva: está relacionada à habilidade do indivíduo de reter e manipular informações, tendo efeito sobre outros mecanismos neurocognitivos como a atenção, inibição, compartilhamento de tarefas e memória de trabalho.

· Regulação Emocional: é aquela que busca estratégias de manejo, inibição ou melhora da ativação emocional, ao mesmo tempo em que dá suporte à adaptação social. A regulação emocional pode ser problemática ou adaptativa.

· Regulação comportamental: está relacionado às estratégias que visam a obtenção do controle do próprio corpo, controlando respostas impulsivas, engajando em atividades e na recepção de demandas de terceiros.

A regulação emocional pode ser problemática para a pessoa autista quando se utiliza de estratégias auto lesivas ou agressivas para a autorregulação, e adaptativa se utilizado de exercícios de relaxamento, exercícios físicos, mídias de entretenimento etc. Pessoas autistas são mais sensíveis às estratégias problemáticas de autorregulação.

Identificar que se está desregulado é um ponto importante para a autonomia

É difícil definir com precisão os sinais de desregulação, mas geralmente, qualquer tipo de mudança de comportamento pode indicar que uma pessoa está tendo dificuldade em gerenciar suas emoções. Pode ocorrer, por exemplo, um aumento de comportamentos motores repetitivos (estereotipias), incluindo batucar, chacoalhar as mãos ou os pés ou balanço do corpo em movimentos que vão para frente e para trás.

Alguns sinais comuns de desregulação:

· Sons do ambiente repentinamente ficam mais altos/incômodos;
· Cansaço extremo sem motivo aparente;
· Fotossensibilidade;
· Estereotipias

Para trabalhar a autorregulação emocional em uma pessoa dentro do espectro, é preciso observar o porquê existe a necessidade de regulação emocional. Existe um gatilho para que a pessoa autista manifeste comportamentos estereotipados, portanto, esses movimentos comunicam alguma dificuldade ou problema. Cada pessoa autista é única – e seus sinais de desregulação também. É importante observar, após uma crise, os primeiros sintomas para tentar identificar um padrão.

Ferramentas de autorregulação

Como cada autista é único, seu processo de regulação também o é. Por isso, o conhecimento de diferentes ferramentas de autorregulação realizadas por outros autistas é fundamental para que se teste diferentes hábitos – até encontrar aquele que o ajudará neste momento de desregulação.

As estereotipias, também conhecidas como “stims”, funcionam como mecanismos de regulação de pensamentos, emoções e sensações. Isso faz com que os autistas possam ser hiporresponsíveis (não reagindo a outros estímulos ou pouco reativo e responsivo).

Comportamentos agressivos ou autoagressivos, movimentos repetitivos com o corpo, agitar, sacudir ou bater as mãos e realizar movimentos de pêndulos são estereotipias comuns associadas aos processos autorregulatórios no autismo.

Algumas formas de “stims” são:

  • Stimming tátil: busca por regulação através de texturas / sensações táteis específicas. Podem ser delicadas ou ásperas.
  • Stimming corporal: movimentos repetitivos (ou não) com o corpo, como balançar as mãos, sacudir os braços, girar…
  • Stimming visual: observar um ponto fixamente ou algo que se movimenta, como ventiladores ou lâmpadas vulcão.
  • Stimming sonoros: ouvir repetidas vezes as mesmas músicas ou realizar vocalizações/assobios.

O processo de Nesting (criar um ninho), ainda pouco difundido na comunidade autista, também pode ser uma tática importante no processo de autorregulação.

*Este aninhamento autista refere-se à prática de criar um espaço ou ambiente pessoal, confortável e seguro que proporcione conforto sensorial e uma sensação de segurança. Este espaço — um ‘ninho’ — é muitas vezes caracterizado pela disposição específica de itens, como cobertores, almofadas, objetos favoritos ou brinquedos sensoriais, concebidos para criar um ambiente acolhedor e relaxante. Os itens utilizados e sua disposição são normalmente personalizados de acordo com as necessidades e preferências específicas do indivíduo.

A busca pela autonomia da pessoa autista em seus processos regulatórios é uma constante. Nem todos os dias serão iguais e, por isso, nem todos os dias as ferramentas que testamos anteriormente serão eficazes.

É um constante “estar, errar, observar, corrigir/adaptar”. 

Também é importante reforçar que descansar e se regular antes de alguma atividade estressante nem sempre vai significar evitar uma desregulação, mas sim evitar uma desregulação ainda mais severa.

A desregulação é parte inerente da pessoa autista, principalmente na configuração de vida/sociedade que temos hoje. O importante é estarmos cientes de nossos gatilhos, de nossos primeiros sinais de desregulação e, principalmente, de como nós mesmos podemos nos regular para voltarmos à nossa normalidade – e continuar a experienciar a vida.

Referências: Como trabalhar a autorregulação emocional no autismo? e O que é o nesting autista? (Inglês) textos adaptados livremente por Jesse Santiago e Pedro Anacleto para o exercício dos encontros atípicos.

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